O trabalho, a vida ou nós (?)

“Sem trabalho eu não sou nada, não tenho dignidade, não sinto o meu o valor, não tenho identidade” – essa é frase do Renato Russo e inicia a canção “Música de trabalho” que consta do último álbum da Legião lançado com o genial e intelectualíssimo Renato, ainda vivo.

Penso que são fortes essas colocações iniciais da música e me faz lembrar de uma passagem profissional importante, de quando eu ainda era estagiário: eu dava grande valor à marca da empresa que eu trabalhava à época. Pudera! Eu era um jovem estagiário na Bosch, uma das maiores empresas alemãs e com forte presença global. Me achava! Eu era a Bosch, ela era minha identidade… “não sinto o meu o valor, não tenho identidade”…

Depois disso continuei em grandes marcas, pois tive passagens importantes em outras gigantes em seus seguimentos, General Motors e PepsiCo (se pronuncia pÉpsico e não pepsÍco). Hoje eu trabalho em uma das menores empresas do mundo, pelo menos naquilo que chamam de valor de mercado, mas com muito valor para a alma: a minha empresa! Também tenho relações profissionais importantíssimas com o IJEP, mas nem de perto são iguais as relações de trabalho que tipicamente temos com as empresas do estilo das mencionadas acima.

Talvez até para reforçar minha nova identidade de analista ou criar uma pós-verdade para mim mesmo (tipo uma mentira, só que verdadeira, ou tipo uma verdade, só que mentirosa) sempre digo que diferentemente de muitas outras pessoas que observo, não tive uma carreira mediana para fugir dela e virar consultor, coach ou mentor, sob a desculpa de que precisava fazer uma “mudança de carreira”, sendo que na verdade o que eu não conseguia era bancar os desafios corporativos.

Oposto, no meu caso foi uma carreira exitosa na perspectiva corporativa: promoções, visibilidade, projetos importantes, viagens de negócios, relação com gente de empresas muito expressivas e por aí vai. Depois veio o desejo: quero ser Analista – a nova identidade! Mas isso faz diferença?

Por um lado, sim, porque o “DNA” daquilo que entendemos como busca pelo sucesso parece vir junto, por isso sempre menciono o olhar de “business” que tenho para o meu consultório, que também considero de sucesso na perspectiva, de novo, do business. Mas o quando trazemos a perspectiva junguiana, prefiro até mudar o termo, usando o “bem-sucedido”, isto é, aquele que almeja deixar bons sucessores, do que usar termo “sucesso”. E essa verdade penso que só saberei daqui alguns anos, pois muitas águas precisam passar por aqui – lembrando que águas são afetos, emoções, sentimentos e mais um pouco – para avaliar se consegui deixar bons sucessores.

Por outro lado, não, porque a vida não tem compromisso com todos os projetos que construímos, afinal, o projeto é a resultante de uma projeção, e uma projeção nunca é a imagem em si, que é a que verdadeiramente precisa ser contemplada. Então apesar de eu vociferar que minha carreira foi bacana, não posso esconder que eu fui demitido da PepsiCo, o que representa um fracasso nos termos corporativos. O ponto é que tudo que veio depois pra mim deu tão certo que naturalmente inverti o polo, assumindo que essa demissão foi o melhor que poderia me acontecer, e foi, mas também foi um fracasso – ah, o paradoxo!!!

Voltando no Renato Russo, ele fala da “identidade” que o trabalho nos dá e não podia ser mais verdade! Nos apresentamos pelo trabalho, “oi, sou o Rafael, Analista Junguiano”. Não vejo nada de errado nisso, pois imaginem se fosse “oi, sou o Rafael, uma ambiguidade ambulante…”, acho que não ia dar muito certo. Mas o ponto é que o trabalho como compreendido na atualidade virou essencialmente uma fonte de transtornos, sejam eles patológicos, neuróticos ou projetivos.

E agora, mais uma vez, o paradoxo entra em cena, pois por algum tempo me dediquei a fazer palestras sobre saúde mental nas empresas – a identidade do palestrante –, mas isso mudou! Explico: em parte por algumas empresas remunerar MUITO mal os palestrantes (mas também fui muito bem remunerado em boa parte delas) e outra parte por eu ter uma baita preguiça do “briefing” que pessoal do RH faz, querendo saber se conteúdo da palestra “fere” os valores da empresa, e mais uma porção de bobagem, fui me despedindo desse mundo para empreender energia nos atendimentos analíticos, supervisões, aulas e afins!

Esse briefing todo do RH provém do fato de ser é um departamento que trabalha a favor da empresa e não a favor das pessoas – e menos ainda para conectar um e outro como eles fantasiam que o fazem. É medo da sombra, medo de descobrir que sim, as empresas são produtoras de doenças e esse senso identitário que elas querem criar, é um “nós” fake, que procura eliminar a sombra do processo.

Além disso, e aqui o paradoxo vem mais forte, eu sei que alguma parte minha quer provocar uma outra visão sobre o mundo do trabalho – devidamente registrada em meu livro (já adquiriu o seu?) – e outra parte quer passar longe dessas idiossincrasias, me dedicando a acolher e a ampliar as questões psíquicas do trabalho quando meus analisandos as trazem para falarmos em análise, sem esse enquadre corporativo.

Fora tudo isso, já está acontecendo o que sempre acontece: o próprio dono do capital passa a cuidar do problema da saúde mental na empresa, ou seja, agora temos empresas e palestrantes hiperespecializados no tema, mas que defendem os interesses das empresas. Foi mais ou menos quando a indústria pornográfica ligada aos maiores sites de pornografia do mundo criou a própria empresa para fazer as testagens sorológicas de atrizes e atores, sem a participação de uma empresa independente. Me perdoe se alguém não gostar da comparação, mas é assim que eu vejo! Fora que é bem mais forte do que falar “é a raposa cuidando do galinheiro”, não?

Assim como qualquer outra pessoa não estou livre de sofrer pelo trabalho, mas posso afirmar com relativa clareza que viver para se adaptar ao trabalho não parece ser o que a vida exige de nós – por isso essa onda de burnout vindo forte! A vida é exigente, e quer que a consumamos, assim como ela nos consume, mas ela quer ambos em sua plenitude, e não meia-boca. Se só consumirmos vida, ela vai nos consumir, se só formos consumidos não conseguiremos consumir, e um depende do outro para o estabelecimento da harmonia.

O trabalho é parte da vida, mas não é tudo. Por isso que, diferentemente do trabalho feito para a empresa (esse dos palestrantes e dos ditos especialistas no tema), o trabalho que é feito no consultório não intenciona que o indivíduo se adapte à empresa, mas a si mesmo (e ao Si-mesmo), mas considerando que adaptar-se a si, também é adaptar-se, em parte, ao externo, mas sem negar o interno – ah, o paradoxo!!!

Em suma, trabalhar é importante, é digno, é identitário, mas se isso for sinônimo de vida, o eu (e o nós) fica em segundo plano. Mas o segundo plano, enquanto reprimido, quer virar o primeiro, e o primeiro, enquanto repressor, sofre as invasões do segundo, e a isto chamaremos de angústia (que pode vir com outros nomes, burnout, depressão, ansiedade, pânico, etc.). O desafio é que o trabalho sirva vida e a vida sirva ao trabalho, para que o eu (ego) se realize, se sentindo único, identitário, e paradoxalmente se sentindo coletivo, integrante do nós (do Si-mesmo). Topa o desafio? Converse comigo lá no Instagram. Grande abraço!

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